8 itens encontrados para ""
- 2º ENCONTRO DE ARTES PERFORMATIVAS
O DOBRAR DOS SINOS EM QUATRO DIAS Diogo Sottomayor O dobrar dos sinos em quatro dias. Ser a observação externa de um encontro tem sempre coincidências a ocorrer. Ou acidentes. Neste caso, uma das partilhas e visitas deste encontro foi a um sino e, sobre isso, no terceiro dia relato com mais pormenor. O interesse nos sinos e no seu valor simbólico foi tanto, que optei por utilizar a sua matéria, a sua simbologia e factos interessantes sobre eles para pontuar textos, para procurar relações e potencialidades entre as várias partilhas e, ao mesmo tempo, aliar-me a esta senda de mostrar que os sinos não são apenas do patriarcado, e que mais corpos e mais pessoas podem tocar neles e, sobretudo, escrever sobre eles. Factos sobre sinos I Os bonshō (梵鐘), também chamados de tsurigane (釣り鐘) ou ōgane (大鐘), são grandes sinos de bronze presentes nos templos budistas do Japão, usados para convocar monges para a oração e para marcar o tempo. Em vez de terem um badalo no interior, são tocados no exterior com uma marreta ou barra suspensa. O sino mais antigo registado no Japão data de cerca de 600 d.C., mas o seu design, de origem chinesa, é mais antigo e partilha características com antigos sinos chineses. O som dos bonshō pode ser ouvido a longas distâncias, levando ao seu uso como alarmes, marcadores de tempo e para transmitir sinais. Acredita-se também que o som dos bonshō tem propriedades sobrenaturais, podendo, por exemplo, ser ouvido no submundo. O seu significado espiritual torna-os fundamentais nas cerimónias budistas, especialmente no Ano Novo Japonês e no Festival O-Bon. Ao longo da história do Japão, vários bonshō ficaram ligados a lendas e histórias, como o Sino Benkei de Mii-dera e o sino de Hōkō-ji. Atualmente, os bonshō são vistos como símbolos de paz mundial. Observar da Torre. A tarefa de observar criações, trabalhos em progresso ou workshops é sempre de uma negociação difícil. Por um lado, porque há trabalhos com os quais temos uma relação direta, noutros, a porta de entrada é mais complicada, e noutros casos ainda estamos a ver de dentro, o que implica que podemos ver menos. O meu trabalho ao longo de quatro dias foi observar estes objetos em relação nos seus dias. Aproveitando que este ano há um trabalho que trabalha a partir da história do sino e da sua composição aproveitei para criar, este ano, a observação de cada um dos dias pelo prisma do material plástico do sino, da sua função ou da sua activação. Assim, aproveitando este espaço temporal aqui criado, esta reflexão que surge agora na versão escrita, convido quem viu, quem não viu, quem ouviu falar e quem queria ter estado e não conseguiu a vir nesta viagem de quatro dias. São agora dezassete horas, o sino tocou cinco vezes e vamos começar. ____________________________ Dia 4 de setembro A corda de iniciação. Factos sobre sinos II Os sinos são frequentemente vistos como a voz de Deus, anunciando tanto nascimentos como mortes, estando presentes em todos os momentos da vida religiosa. De forma semelhante, tinham a função de chamar para os ofícios religiosos, convocando tanto fiéis como clérigos. Os seus toques eram codificados, de modo que tanto o povo como o clero conseguiam identificar as suas mensagens: sabiam, por exemplo, se tinha falecido um homem, uma mulher ou uma criança, ou se estavam a ser chamados para ofícios comuns ou festividades, entre outros casos. Os sinos regulavam o passar do tempo, acompanhando as celebrações do calendário litúrgico, marcando as horas e avisando para o início e fim do dia de trabalho. No entanto, a sua relevância social ia além disso, pois eram utilizados para alertar sobre ventos fortes, tempestades, desastres, incêndios e até eventos de guerra.1 O seu som, com uma natureza apotropaica2 e profilática, tem feito parte da paisagem sonora de aldeias, vilas e cidades há séculos. Por essa razão, cedo entraram no imaginário coletivo, sendo envolvidos em lendas e superstições que frequentemente lhes atribuíam propriedades premonitórias e volitivas, acreditando-se que previam e avisavam sobre acontecimentos importantes prestes a ocorrer. Com esta imagem em mente, partimos em direção ao workshop do Collective Le Poeme en Volume onde é discutida a ideia de improvisação, a ligação dos objetos. Não raras vezes assistimos a objetos serem lançados ou utilizados de formas não convencionais para testar esta hipótese: O que ocorre? O que acontece? A procura deste coletivo baseia-se na imagem do gancho que apanha o peixe, nomeadamente no momento em que ele é puxado para fora de água. Como isolar o momento da decisão? E porque decidimos dessa forma? Um dos intérpretes fala também da sua relação com o texto e como ele ganha outra vida aquando da sua ativação em pé. Indo mais longe na imagem e indicando que o texto é como uma guitarra que aprendemos a tocar. As relações entre texto e imagem surgem em vários momentos de ativação, como um puxar de corda e esperamos pelo som que surge depois. A meio da manhã somos ainda ativados a pensar na plasticidade do som e a meditar sobre os vários tipos de silêncio. Se é de antecipação, espera ou dramático. Ao mesmo tempo. Da mesma forma, quando se fala do futuro no som, é aquele tempo entre a ativação do instrumento e o som emitido. O futuro é isso, é saber que trabalhamos para um a seguir que ainda não ocorreu ou ainda não se ouviu, a potencialidade do objeto. De outras potencialidades fala-nos também Catarina Real com o seu livro de Poemas: Cores. Revelando a sua dificuldade em trabalhar com cores como o vermelho e o castanho e a sua relação com elas (que na pintura até as dava a outras colegas que as usavam) cria agora este livro onde a cor é utilizada como prescrição. A prescrição da cor, ou seja, esta relação de sujeito com uma determinada cor. Há também o desafio que lhe colocaram de responder ao cinzento, a cor que é utilizada na pintura para representar a passagem da testa para o couro cabeludo e como esse estímulo a obrigou a olhar com mais atenção para esse tipo de detalhes. Os poemas são em torno da cor em movimento, da cor em ação no quotidiano, íntima ou social. A partilha dos poemas, sobretudo com o título: “De dezembro a janeiro”, tem esta ligação ao número 12, que é também o número máximo das badaladas do sino. E, como forma de terminarmos esta passagem por Cores partilho o último poema lido, de nome FOGO FÁTUO: «Tudo terá de ser lido duas vezes para ser aprendido pelas mãos.»3 E depois de lermos duas vezes chegamos ao concerto de Henrique Fernandes e João Ricardo WEE – DUST MEMORIES onde, segundo os próprios, ouvimos um conjunto de fontes/materiais sonoros tanto acústicos como eletrónicos provenientes de fontes eletrónicas em elevado risco de inoperacionalidade e obsolescência, tais como reprodutores de áudio de vários formatos (leitores de CD, leitores de K7), rádios, televisores, telemóveis, entre outros, procurando esta relação no território do erro e do efémero. Nesse sentido eles destacam a não alteração ou manipulação das fontes originais, compuseram uma série de peças sonoras, que deram origem à edição fonográfica, editado pela Sonoscopia no ano de 2023 e agora em estreia absoluta nesta performance ao vivo. A experiência estética deste concerto leva-nos para o imaginário criado pelos sons, uma espécie de escultura sonora que nos envolve. Ouvindo sons de outros tempos, de um passado. Se o coletivo francês discute a questão do futuro no som, aqui há esta remissão ao som passado, ao som efémero. A estas paisagens sonoras, como formas de sintonização com o passado ou que ouvindo nos invoca a imagem do rádio. São gotas sonoras que, gota a gota, montam em tempo real este património sonoro de dispositivos que estão em vias de extinção. Em vias de extinção também está TUVALU. E Marina Leonardo , na sua partilha de processo de TUVALU ou o desaparecimento das coisas, um espectáculo de teatro sem a presença de atores criado em 2023 em cocriação com Nuno M Cardoso com a intenção de ser apresentado apenas uma vez (uma temporada de 6 sessões) e depois “desaparecer”. O tema da morte, nascimento e esquecimento estão presentes neste trabalho onde este percurso feito pelos espectadores (e onde existia um protocolo anterior para a escolha do percurso, nomeadamente através da resposta a perguntas como: Qual foi a última coisa que desapareceu da tua vida? E o que desapareceu completamente em ti?), onde cada espectador é levado a refletir de forma política sobre assuntos como a ecologia, com frases provocadoras relativamente à gestão de recursos do planeta, e a tomar consciência sobre o tempo, a existência, a mudança e a resiliência. Não bastando existir na condição de ser sobre este tema, mas o próprio objeto criado ter este cariz efémero e de condição de desaparecimento no final, tal como o sino que faz um aviso sobre algo que aconteceu localmente, e esse aviso se dissipa no ar. É também curioso pensarmos este trabalho na óptica do sino que dá sinais. Poderíamos até discutir se não estaríamos perante uma instalação onde somos convidados a mergulhar neste aviso inquietante que nos submerge e nos devolve ao quotidiano sob este aviso. Sabendo nós que ele desaparece no final. No fim, devolvidos nós à realidade do final do primeiro dia, assistimos à partilha, ou melhor, ao convite a partilhar a praça e a blackbox com Tout le monde est invité uma improvisação site specific onde o público é convidado a habitar a improvisação. Um carro laranja surge da estação de comboios com a música “E depois do adeus” de Paulo Carvalho em direção ao Imaginarius. E habitamos aquele espaço com música electrónica e acústica, vídeo projetado em tempo real sob a Nave Central, dança contemporânea e poesia. Durante a partilha, vários são os momentos em que podemos participar ativamente em ser deslocados por corda, ou a ver Vasco Otero e Isabel Ariel na sua relação com a água e assistirmos em conjunto ao que surge a cada momento, a cada movimento que também Gaël Domenger performa em contacto com os outros corpos. O mesmo se passa com Donatien Garnier na sua partilha textual e na sua procura de relação física com o que está a ser dito. Yves Favier na sua procura e partilha de objetos com o público e a criação de momentos performativos com o público e György Kurtág Jr. onde nos inteiramos da sua prática de pesquisa gestual dos instrumentistas e de criação de novos instrumentos. E com esta partilha termina assim o primeiro dia, deixando as marcas de giz no espaço como lastro da passagem desta apresentação até ao seu desaparecimento. O sino tocou 11 vezes. A corda foi puxada 11 vezes. ____________________________ 1 Almeida, C. A. F. de. (1966). Carácter mágico do toque das campainhas: Atropaicidade do som. Em Revista de Etnografia (Vol. 6, Tomo 2, pp. 339–370). Porto: Junta Distrital do Porto. (p. 342) 2 apotropaico (a·po·tro·pai·co) adjectivo, Que pretende ter ou tem o poder de afastar o mal. = APOTROPEICO, APOTROPEU 3 Real, C. Cores. 2024. ____________________________ Dia 5 de setembro A activação. Factos sobre sinos III As várias formas de tocar são linguagem convencional, que pode ir das simples badaladas, ao dobrar, ao toque picado, ao toque encadeado e ao toque repicado ou repenicado, que é o mais festivo. Tal linguagem continua a ser perfeitamente compreendida. Mesmo nas cidades, apesar dos ruídos, os sinais sonoros dos sinos não passam despercebidos. O sino tocou 10 vezes. Começamos o dia com o workshop de Mariana Tengner Barros EXCALIBUR. A própria assume fascínio pela forma como as pessoas se representam e mostram nos planos sociais de existência, e admite ainda sentir-se intrigada pelas tensões do parecer e ser e de como podemos viver mais próximos da nossa essência. Ao longo da manhã articulamos os nossos corpos com o que Mariana chama de filtros de realidade elementais. Com os elementos água, terra, ar e fogo somos desafiados a explorar estas formas no espaço exterior. Quer numa relação direta com água, sentir uma árvore, sentir fumo ou relacionar o nosso corpo com o sol. Sempre com esta ideia de corrente, de caminho. Depois, pensar no rio como nascente e delta e com essa imagem do seu curso levar os participantes a explorar movimentos em que a pessoa atrás fixa apenas numa pessoa para imitar o movimento. Tornar os nossos corpos uma corrente do rio que está em relação com um, mas que se liga ao todo. A parte da tarde foi ocupada na reflexão do que é ser câmara, performer e testemunha. Num desses exercícios tínhamos de ser uma câmara oculta e partilho aqui o texto: “Um almoço. Discussão sobre a peça da noite. Dinheiro, problema, porque havia outra, tinha algumas, os ovos também são para nós? Já levei? Mas era só uma? Já não há pessoas assim. Está ali um telefone perdido. Enciclopédico. Memória de elefante. Uma coisa da Vera no Alkantara... em 2006. Alguém que escreveu. Comer, levantar, há mais? Sentar. Dança dos corpos que se estão a alimentar. Querem que feche o portão? Para haver menos vento. Sons de panelas. Talheres. Os que comem em silêncio. Troca de risos. 66 anos? Mas sempre muito lúcido. Pedaços de pão. Um homem que viveu intensamente os anos 80. Quando todos iam ao pride, eu também tudo à volta do Manuel Reis. O que é este movimento? Este percebo. Esse não percebo. Diz mais do que palavras, não é? Enfim, um senhor. Muito amargo. Ai jesus! Alguém tem uma camisola colorida. Alguém com uma t-shirt com a palavra missing. O que falta neste almoço?”4 Este exercício ajudou-nos a refletir sobre a ideia de atenção, para onde ela recai. Para a forma como vemos os outros e como sentimos que eles interagem. E com esta ideia, então procurar relações nos exercícios e contaminar as nossas práticas com estas histórias e construir coisas novas. Nas palavras de Mariana: “Abarcar-se-á o jogo, o jogar a sério, que é brincar, porque brincar é essencial para a perceção lúcida da realidade, desligada de autocensura e em sintonia com a curiosidade.” E o que poderá ser melhor para o despertar sensorial do que refletir sobre modos de produção com Joclécio Azevedo em Uma coisa equilibrada entre duas coisas. Numa relação de um para um, o artista convida-nos a passar 15 minutos deitados numa cama, num quarto individual, com material rejeitado de outros processos de trabalho, numa alegada acumulação de material «inútil» onde somos confrontados com esta ideia de modo de produção neste contexto de aceleração produtiva e escassez temporal, segundo as palavras do próprio. Somos então ativados através do questionamento do próprio dispositivo. Sobre esta ideia do começo, é possível fugir ao início? E se ficássemos à espera, deitados, de algo que nunca acontecesse? E na nossa mente uma série de imagens surgem, a voz de Joclécio leva-nos a refletir sobre estas questões do fazer, do material, das concepções do que é e do que poderá ser. Uma linguagem que se coloca em causa, e, ao mesmo tempo, coloca a tónica nas coisas, porque elas também agem sobre nós. E enquanto faz isso, o tempo vai passando e somos acordados com a frase final: “E se o modelo nunca estiver completo?” A resposta não é dada. Porém, não são os sinos que nos convocam, mas sim Miguel Pereira com a sua partilha 61 minutos onde o público é levado a experimentar a técnica da deriva, muito utilizada por Guy Debord (partindo de um lugar, a pessoa ou grupo que se lança à deriva seguirá uma rota indefinida, deixando que o meio urbano os ‘guie’ ao acaso, pelo caminho que segue.), e que aqui somos desafiados a uma caminhada errática, podendo ser, de acordo com o artista, contemplativa, visual e sonora. Nesta caminhada temos o espaço urbano ou rural como espaço de conexões e potencialidades várias. Desde procurar novos locais que de outra forma não exploraríamos. Observar como é que o grupo se comporta e como toma decisões sobre qual o próximo caminho. Ter em atenção que o desafio é, sem relógio e em silêncio, ao final de 61 minutos voltarmos ao ponto de partida. Como comunicar em silêncio? E como avisar sobre os perigos? E se as luzes intermitentes remeteram à diversão noturna? E se encontrarmos um jardim a ser regado? E se encontrarmos um sapo em deriva? Ao final dos 61 minutos não se ouve o sino, mas sim o alarme do telefone. Chegamos até ao destino e já podemos falar. O sino agora sim, toca 11 vezes. É o fim do segundo dia. ____________________________ 4 Texto criado para o workshop de Mariana e escrito enquanto os artistas do encontro estavam a almoçar. ____________________________ Dia 6 de setembro A memória do sino Factos sobre sinos IV Devido à sua vasta gama de usos, tanto simbólicos como funcionais, os sinos têm uma presença de séculos nas paisagens sonoras e na memória afetiva das populações. Dentro das suas funções destacava- -se, para além da marcação do tempo, o anúncio de nascimentos e mortes, alerta sobre incêndios, e ainda convocatórias para missas e outros ofícios religiosos. O seu toque indicava o início dos trabalhos nos campos e o momento de os terminar, sendo até arriscado continuar a trabalhar para além da hora assinalada.5 O sino tocou dez vezes. E, dentro do tema de toque e intimidade, Carminda Soares e Maria R. Soares com Bright Horses - do gesto ao significado foi uma experiência imersiva que combinou práticas físicas e de expressão como o toque, o movimento, a voz e o diálogo. O objetivo principal proposto foi explorar e ressignificar os conceitos de família, afeto e competição, usando esses elementos como pontos de partida para uma reflexão mais profunda sobre as dinâmicas sociais. Durante o workshop os participantes foram levados a refletir sobre as noções tradicionais de família, afeto e competição. O que levou a exercícios de partilha pessoal e a discussão sobre as perceções e experiências de cada um nesta fase da desconstrução de conceitos. No que concerne às práticas de corpo e movimento o uso do toque e do movimento foi usado em exercícios de confiança em pares e improvisações de movimento. Estes exercícios foram utilizados para ilustrar e vivenciar as emoções e tensões presentes nas relações familiares, como disputa, agressão e afeto. A voz também foi utilizada como expressão emocional, como forma de libertar tensões ou evocação de sentimentos associados a momentos como luto e despedida. O diálogo e a interação também foram utilizados para que o grupo tivesse este momento de partilha de experiências e levando à reflexão sobre como pequenas interações se relacionam com dinâmicas sociais maiores. Dentro do tema da família esteve também Margarida Montenÿ com a partilha da pesquisa Boca de Sino, onde através da visita à capela da Nossa Senhora da Piedade, conhecemos a Senhora D.a Aida, filha da última sineira que tocou naquela capela, a Senhora D.a Palmira. Começou a sua pesquisa a partir de uma curiosidade mecânica, isto é, entender as possibilidades ou exemplos de sistemas de roldanas e contrapesos utilizados em diferentes tipos de sinos e torres sineiras, uma vez que o seu trabalho parte sempre de uma relação entre mecânica e contrapesos na corda. Quer entender os sistemas para os poder manipular e utilizar para o convite de coprodução. No entanto, a procura dessas respostas práticas e, alegadamente, simples, fê-la chegar até este material extenso sobre sinos, com a dificuldade acrescida do património sineiro português ser muito frágil, não obstante a relação litúrgica e católica e a automatização dos sinos e consequente desaparecimento da profissão em Portugal. Porém, vê-se imbuída numa tradição patriarcal muito forte onde descobre coisas como: “Acreditando que as mulheres têm um pacto com o diabo e, sendo o sino um instrumento divino, a presença das primeiras poderia comprometer o sucesso da fundição.”6. Também por questões de toque do sino, em que no anúncio da morte, além de distinguirem entre homem e mulher, tocam três vezes no primeiro caso e duas no segundo. A artista viu-se assim a pesquisar algo que, à partida, seria simples, como muito complexo e teve a sorte de encontrar uma mulher sineira, o que a inspirou a ir mais fundo na sua investigação e lidar com esta tradição maioritariamente masculina e demonstrando que o seu toque, a sua vontade, além de ter uma motivação intelectual tem também um cunho político muito forte. E, por falar em mulheres, seguimos o nosso caminho em direção à próxima partilha, desta vez na Praça Central com Asta em ad murmuratio. O dispositivo cénico é composto por 14 cadeiras espalhadas pelo espaço e sete atores que aguardam pela nossa visita. As cadeiras, colocadas lado a lado em oposição, em forma de ‘S’ remetem para a cadeira conversadeira, cujo propósito era facilitar conversas íntimas entre casais ou momentos de confidência, o que justifica o nome “conversadeira”. Esta performance/instalação pensada para o espaço público é ativada pelo público quando nos sentamos junto dos atores. É importante referir que não se trata apenas de dizer um poema ou partilhar um texto, trata-se de um momento de intimidade, dito em sussurro, quase como um murmúrio, das palavras imortalizadas pela poesia de Florbela Espanca . O percurso entre as ‘conversadeiras’ é livre, cada pessoa pode circular livremente por cada uma, escolher a ordem e até repetir se assim lhe fizer sentido. A plasticidade do trabalho é muito curiosa, a intimidade é trabalhada não só a partir da palavra, mas sim a partir de gestos: como segurar as mãos ou abraçar; objetos: um pequeno papel com um poema, um guardanapo com a impressão de um beijo com batom vermelho; experiência sensorial: através da venda, ou da música que é tocada para nós; ou o corpo como objeto técnico: em que nos é permitido escrever no corpo da atriz, como se de uma tela se tratasse, e com recurso a um eyeliner deixamos as nossas palavras no corpo dela. Apesar das experiências serem todas muito distintas, o caráter efémero permanece. É um encontro fortuito que se dissipa, tal como as frases escritas a lápis, que apenas registam a sensação do momento. © DIOGO No final do dia, visitamos o trabalho de Ana Dinger com O que é feito de si, Margarida Abreu?, segundo Ana o título escolhido foi tomado de empréstimo de um programa da RTP, do início dos anos 90, de autoria de Nunes Fortes e Paulo Alexandre que, em programas curtos, recordavam os rostos e memórias de algumas figuras portuguesas (...) nos campos das artes, desporto e espetáculo. Assim, somos convidados a refletir sobre o arquivo da vida e obra de Margarida de Abreu (1915-2006) figura ímpar da dança portuguesa. Segundo António Laginha: “Poder-se-á mesmo afirmar que, tendo em conta certas limitações que se reflectiram no seu longo percurso artístico, a sua influência foi particularmente importante num período em que a pedagogia e a profissionalização no bailado em Portugal eram, praticamente, inexistentes.” (Laginha, 2014)7 Com efeito, Ana Dinger, que tem acesso ao espólio da artista cedido pela família de Margarida de Abreu, começa a sua apresentação indicando as imprecisões históricas do programa da RTP, organiza todo o espaço da Nave Central para expor este arquivo, ao mesmo tempo que projeta as várias fotografias que digitalizou onde é possível seguir uma linha temporal dos trabalhos da coreógrafa que têm mais de 60 anos de atividade. Para refletir sobre a ideia de arquivo recordo-me sempre deste texto de Miguel Leal: “O arquivo vive pois encaixado entre essas duas noções primeiras, de um lado a ideia de origem, de começo, a ideia do arquivo como traço fundador, e, por outro, a ideia de arquivo como mandato, como ordem instituidora, como lugar onde se exerce a autoridade. O arquivo conserva e institui. Pensar no arquivo é assim pensar, em primeiro lugar, na economia do arquivo. E se não há corpo sem arquivo, diria que não há arquivo sem um corpo, sem uma economia que é antes de mais a economia dos corpos que o constituem e que a partir dele se enunciam.” (Leal, 2014)8 Para refletirmos sobre a ideia de arquivo a primeira ideia que me surge é: e quem não teve arquivo? Quantas figuras foram esquecidas? Quem tem acesso e pode fazer arquivo? E de que forma foi arquivado? Pode o arquivo ser a forma com mais acuidade para contarmos a história de alguém? Quais são as suas limitações? E, no caso das pessoas, que tal como Margarida Abreu, tinham a possibilidade de o ter, porque é que mesmo assim foram esquecidas? Agora não temos de tocar o sino, mas sim evocar as suas 11 badaladas. Fim do terceiro dia. ____________________________ 5 Almeida, C. A. F. de. (1964). Senhora da Abadia. Em Revista de Etnografia (Vol. 2, Tomo 2, pp. 303– 308). Porto: Junta Distrital do Porto. (p. 342) O DOBRAR DOS SINOS EM QUATRO DIAS 6 Magalhães, A. (1999). Monografia de Rio Tinto- Apontamentos monográficos (Vol. 1). Junta de Freguesia de Rio Tinto. (p. 211) 7 Laginha, A. (2014). Memória da Saudade: o percurso e identidade artística do Ballet Gulbenkian como estrutura de referência na dança portuguesa (1961-2005). Tese de Doutoramento, Universidade de Coimbra. (p. 89) 8 Leal, M. (2014). O corpo como arquivo, o arquivo como corpo. Em D. Carvalho, F. Teixeira, J. Brojo, D. Cannatà, & M. Leal (Coord.) (Eds.), Kraft #1 (pp. 23–29). i2ADS - Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. (p. 27) ____________________________ Dia 7 de setembro A Matéria do Sino Factos sobre sinos V Existe uma correlação directa entre o diâmetro da abertura, o peso total do sino e o tom, ou seja, a nota musical que este irá produzir.9 O último dia surge com a ausência do tocar do sino. D1V3R: uma possível partitura para não esquecer de pensar.10 de Filipa Duarte teve início às 15h15. Neste seu trabalho em progresso Filipa partilha parte da sua história na dança e no BCN, ao mesmo tempo que partilha as suas inquietações sobre este seu hiperfoco constante em coisas tão distintas. A partilha passa pelos seus momentos em workshops, recordações da primeira vez que dançou para o BCN, discute o que é uma ideia de limpeza e o que é uma ideia artística ao mesmo tempo que, através do seu corpo e da sua géstica, mostra que materiais, situações e objetos lhe roubam a atenção. Com especial relevo nas questões da saúde mental e no bem- estar de pessoas que não se sentem confortáveis em ambientes pouco ou nada diversos. Plasticamente, a artista colaborou com Rui Ferreira que acompanha o trabalho em cena com uma guitarra e Ricardo Nogueira Fernandes que criou o espaço sonoro onde o corpo da coreógrafa habita com recurso à síntese granular, que vai evoluindo ao longo da peça criando relações com o texto e o movimento. No que concerne ao vídeo, a edição esteve a cargo de Manuel Monteiro . Na ausência dos corpos das pessoas em cena, a figura da legenda surge como evocação de algo que passou, ou, neste caso, de uma tentativa de possível fim. Como indica Filipa na peça: “Também acho importante referirmos, algures, que isto não é um trabalho final, não é estanque, a criação não está limada, acabada, mas também não é inacabado, também não foi procrastinação. Eu acho que quem diverge vai perceber. Na verdade, quem é hiper é assim. Começa e sente que nunca acaba... e eu não tenho mais texto.” Aproveitando a deixa dada, porque também não tenho mais o que acrescentar, passamos agora para Henrique Furtado Vieira e Lígia Soares , que discutem, literalmente, o fim de um mundo como o fomos conhecendo, numa das performances da coleção Morrer Pelos Passarinhos. Cada um dos performers (Henrique com um discurso mais à direita, e Lígia com um discurso mais à esquerda) nesta espécie de teatro invisível, discutem temas fraturantes da atualidade, onde a cada fala o discurso se torna cada vez mais violento e mostrando que o diálogo não ocorre. Há um momento em que surge um ‘ativista’ que atira um balão de água a Henrique e, a partir desse conflito, desenrolam-se uma série de discursos e ataques entre ambos, onde ninguém é salvo. Falam sobre carreira, filhos, atos políticos, sobre a roupa que usam e até mesmo da forma como, alegadamente, estão sempre sem roupa em cena. Há momentos em que o absurdo é levado ao extremo, onde, por exemplo, Lígia diz: “Henrique, deixa-me dizer-te uma coisa. Tu nem a reciclagem fazes. Eu vi-te a deitar a embalagem de plástico da salada que compraste ontem no Pingo Doce (...)” ou quando Henrique diz: “Sabes qual é a melhor coisa que eu faço pelo ambiente? É estar regularmente desempregado, consumir poucos recursos e criar poucas peças.”. O que leva o público a relacionar-se com este tipo de discussão, que podia ocorrer em qualquer caixa de comentários numa rede social ou num discurso político, porque num diálogo sem partilha, muitas vezes os exemplos mencionados numa discussão são apenas argumentos ad hominem. No entanto, neste caso em concreto é curioso que a discussão é tida em ‘praça pública’ onde no final somos desafiados a lançar os balões sobre Henrique. Aqui, pode ser interessante, por exemplo, ver como este tipo de performance reverbera tendo em conta os espaços onde ela é feita. Neste caso, aqui no Imaginarius, a performance deixou um rasto plástico na parede e o resultado são os restos de balões numa parede. Mais um momento em que se deixa uma marca efémera e mais uma tentativa de arquivar. O dia continua com Fernando Mota em Concerto para uma árvore. Fernando é um artista profundamente ligado à experimentação sonora e à criação de performances que integram elementos naturais e instrumentos inventados. O seu trabalho transcende a música tradicional, utilizando materiais como árvores, ramos e rochas para construir instrumentos musicais experimentais e objectos sonoros, resultando numa abordagem artística única e inovadora. Em Concerto para uma árvore, Mota cria um espectáculo imersivo e ritualista, onde o som emerge diretamente da natureza com o recurso de microfones de contacto. Ele recorre a instrumentos feitos a partir de árvores e outros elementos naturais, como o carvalho recolhido na Serra de Montemuro, demonstrando uma profunda ligação com o ambiente natural. Este concerto é um dos mais versáteis da sua carreira, adaptando-se a diferentes públicos e espaços, revelando a sua capacidade de transformar a natureza em música. Este trabalho insere-se num ciclo criativo mais vasto do artista, que inclui projetos como o filme "7 Poemas para um Mundo Novo", o espectáculo "Passagem Secreta", e o livro-CD "Instrumentária Poética". Este ciclo caracteriza-se por uma pesquisa sobre a intersecção entre som, natureza e arte visual, refletindo uma fase em que o artista explora novas possibilidades musicais e temáticas. A visualização deste concerto leva-nos a refletir sobre a experiência destes sons, mas, simultaneamente, a pensar nestes instrumentos como obras escultóricas. Fernando consegue um cariz multidisciplinar através da sua sensibilidade artística na criação da sua musicalidade. Quem também não tem receio de fazer cruzamentos disciplinares é o Coletivo Suspeito com Ultrassom. Este projeto conta com a colaboração de Maria R. Soares e Ricardo Nogueira Fernandes . Os elementos são ativados pelo movimento de Maria com a instalação que continha água e cujo movimento provocava vibrações na instalação. Ao entrar no espaço de Ultrassom, a sensação imediata é de imersão num ambiente de fronteiras difusas entre corpo, tecnologia e som. O som não é apenas algo que se ouve. Ele atravessa-nos, mapeando o espaço ao redor, assim como os limites do nosso próprio corpo. Esta criação multidisciplinar, que reúne movimento, música e artes visuais, transporta-nos para um universo onde o movimento da intérprete parece emanar diretamente das frequências sonoras, como se fossem guiados pelas ondas ultrassónicas que ecoam pelo espaço. O movimento é fluido, mas ao mesmo tempo preciso, quase como se estivesse a navegar num ambiente invisível, onde cada gesto é guiado por uma perceção que vai além do reino do visível. Tal como diversos animais utilizam frequências ultrassónicas para detetar obstáculos e alimentos, aqui o corpo humano é mapeado por ondas sonoras que se traduzem em imagens, numa fusão entre o biológico e o tecnológico. O público, ao observar, é também levado a questionar a sua própria relação com o som e a vibração, não apenas como algo externo, mas como uma experiência profundamente interna. A forma como as ondas sonoras se convertem em imagens, projetadas em tempo real, cria um elo visual entre o corpo e o som, enquanto o movimento explora esta conexão de forma sensível. A cada movimento, parece haver uma análise subtil, um eco que procura vibrar com e para o público. Quem também convida a pensar matéria é Vinicius Massucato em окрошка: okroshka, uma peça sensorial, onde bens alimentícios são metáfora de diversas camadas. A escolha do prato russo, okroshka (sopa russa) é o estímulo que cria este pós-paladar. A fisicalidade crua e intensa molda o espaço, tal como os ingredientes moldam a receita. A interpretação transcende o texto e dota a linguagem corporal de significados. A tensão latente que perpassa as relações entre atores, alimenta-se da carga simbólica dos objetos. Os corpos são recipientes e sujeitos de transformação. A manipulação do leite e do vinho é como um ritual. Um a remeter para uma pureza ambígua e o outro evocando celebração e decadência. Quando misturados produzem um efeito plástico além da mera representação da aludida sopa. A música não é um complemento sonoro, mas uma ferramenta atmosférica, amplificando o impacto visual e físico da performance dotando-a de um clima quase hipnótico. O que se destaca em окрошка: okroshka é a capacidade de transcender limites da performance convencional. Vinicius utiliza a comida, o corpo, o som e a imagem como veículos para uma experiência sensorial. Como numa okroshka, o espectador é convidado a misturar as suas próprias referências, sensações e reações para criar um prato estético único, onde o inesperado é o ingrediente principal. O sino tocou 17 vezes, uma por cada partilha... Nem sempre os sinos tocam para dar horas. Por vezes marcam, não um fim, mas um até já. ____________________________ 9 Sebastian, L. (2008). História da fundição sineira em Portugal. Museu Municipal de Coruche. Câmara Municipal de Coruche. (p. 103) 10 Participei neste projeto de dentro, enquanto pessoa que escreveu o texto com a criadora, pelo que, é perfeitamente legítimo que se considere uma observação interna. Não deixa de ser observação, mas por uma questão de honestidade prefiro que o leitor saiba que pode existir conflito de interesses na escrita sobre o trabalho. 04.09 — 07.09.2024 SANTA MARIA DA FEIRA ICC — IMAGINARIUS CENTRO DE CRIAÇÃO BCN — BALLET CONTEMPORÂNEO DO NORTE
- RE=INICIAR | Dia # 5
"VOID VOID VOID" de Maria R. Soares & Antonio Marotta e "DRAG (on)" de Mariana Tengner Barros, trabalhos apresentados no Palco do Cineteatro António Lamoso no dia 5 de novembro de 2022. iPhone pics de Rogério Nuno Costa. Diário de Bordo por Diogo Sottomayor Quinto dia Aquecimento. ["Experiência 01", instalação interativa do Colectivo Suspeito habitada/ativada pelxs artistas do RE=INICIAR | Encontro de Artes Performativas. Black Box do Imaginarius Centro de Criação, 5 de novembro de 2022.] - - - Maria R. Soares e Antonio Marotta exploram som e movimento. A proposta é criar “paisagem onde som, espaço e gesto se diluem numa só matéria, numa invocação aos grandes vazios cósmicos. Vazio como potencial lugar não rígido onde o inesperado pode tomar forma e revelar-se.” O dispositivo proposto coloca Maria a comunicar através de dois media: o seu corpo e o movimento do seu corpo que provoca um som. Isto leva-nos a meditar sobre as potencialidades de movimento e som, remetendo para um ambiente contemplativo sem forma. Uma espécie de voltar à caverna onde o gesto primitivo não se esgota em si mesmo, mas deixa um lastro sonoro com uma determinada qualidade. Um espaço que reverbera no público de diferentes formas. Um objeto que não pretende ser mais do que é: um exercício de expansão do medium som aliado à géstica da dança, e cujo resultado não é um fim, mas um processo. Pequena pausa. "VOID VOID VOID" de Maria R. Soares & Antonio Marotta, excerto filmado por Rogério Nuno Costa. Cineteatro António Lamoso, 5 de novembro de 2022. Mariana Tengner Barros surge em cena. Sentimos uma conexão. Sentimos que não há uma vontade de binarizar. Tudo é fluido, tal como o movimento do saco. O som do saco, é também ele uma ode. Há o gesto de Mariana. A cor do espaço cénico. Uma canção. A pretensão é ser uma ode e a criadora surge-nos como uma criatura marítima que transmite melodias. Será a letra importante? Quererá remeter para um espaço aquático do futuro? A criadora indica que são “práticas de estados de espírito e a sua relação com o estado das coisas.” E nós estamos com ela. Nessa exploração, nessa expansão. Já não é apenas dança. Isto podia ser um número de uma drag queen. Ou podia ser outro local qualquer. É sobre transformação. Sobre constante devir e ser. Liberta. E liberta os outros dos fardos da interpretação. No fim, o melhor: um Adeus Performativo. "DRAG (on)" de Mariana Tengner Barros, excerto filmado por Rogério Nuno Costa. Cineteatro António Lamoso, 5 de novembro de 2022. Diogo Sottomayor Registo fotográfico realizado por Jani Nummela (5 de novembro de 2022). Artistas: Maria R. Soares, Mariana Tengner Barros e Pan.demi.CK. Espaços: Palco e Café-Concerto do Cineteatro António Lamoso. Batida Contemporânea do Nós Live act eletrónico de música de dança por Pan.demi.CK "Batida contemporânea do Nós" é uma peça de dança tocada. Tocada por vozes distantes e instrumentos pêrros do passado destas terras lusas. Tocada por vozes tribais e hipnóticas sobre ritmos de percussão ritualistas de terras distantes e variadas cronologias cósmicas. Tocada por uma máquina mecânica e robótica que serpenteia os graves por entre as frestas de uma rave ilegal, reincendeando a alma de memórias futuristas de um passado belo e pagão. Uma peça de dança em que os bailarinos são tu... somos nós... é a liberdade de quem ousar dançar num acto de rebeldia, fintando assim, desmanchando e reconstruindo uma versão melhor deste sistema operativo que nos controla... Transcender na pista de dança é uma obrigação num mundo que nos nos força à apatia. Dancemos Nós o passado e o futuro a esta batida contemporaneamente agora. "Batida Contemporânea do Nós" live act de Pan.demi.CK (Jonny Kadaver), excerto filmado por Rogério Nuno Costa. Cineteatro António Lamoso (Café-Concerto), 5-6 de novembro de 2022. "VOID VOID VOID" de Maria R. Soares & Antonio Marotta e "DRAG (on)" de Mariana Tengner Barros. Registo fotográfico da responsabilidade do Cineteatro António Lamoso, 5 de novembro de 2022:
- RE=INICIAR | resumo
Artwork © Jani Nummela RE=INICIAR Não outra vez, mas de novo Com produção e curadoria do Ballet Contemporâneo do Norte, o Encontro de Artes Performativas terá a sua primeira edição em Novembro de 2022, trazendo à cidade de Santa Maria da Feira um conjunto eclético de criadores, intérpretes, formadores e pensadores da Dança, da Performance, do Teatro, das Artes Visuais, da Música, dos Cruzamentos Disciplinares e do Pensamento para a partilha de conhecimento técnico e teórico entre pares e em colaboração com o público local. Vários espaços da cidade serão ocupados com performances, apresentações de trabalhos em progresso, workshops, exposições, concertos, palestras e residências, propondo uma semana de encontros pluri-disciplinares e inter-relacionais entre as várias tipologias de públicos e as práticas artísticas contemporâneas de natureza híbrida e experimental. O programa pretende assim confrontar a prática, a investigação, a educação, a curadoria e a edição artísticas com outras áreas paralelas à criação, convocando olhares de agentes do jornalismo e da crítica, mas também do pensamento científico, filosófico e antropossociológico, numa plataforma plural de contribuições que se interligam e complementam, propondo uma reflexão holística sobre várias problemáticas que afetam o mundo contemporâneo. Em contra-corrente a uma lógica programática próxima da ideia de “festival”, o Encontro de Artes Performativas lança-se na imaginação e na experimentação de colaborações estratégicas para a criação de projetos duracionais de dinâmica participativa, ambicionando uma ética laboral e interpessoal capaz de criar contextos de trabalho des-hierarquizados e horizontais. O programa propõe uma observação crítica da criação-investigação contemporânea enquanto utopia pluralista e multicultural, abraçando as potencialidades sociais e políticas da arte, assim procurando uma contaminação da criação coreográfica por metodologias, práticas e discursos oriundos de outras disciplinas artísticas. Os criadores convidados serão desafiados a questionar, rever, expandir e solidificar as temáticas, as práticas, as operações documentais e os formatos de investigação que fazem parte do seu universo criativo. RE=INICIAR é o mote que atribuímos à primeira edição do Encontro de Artes Performativas, conceito operacional cuja origem recua ao ano de 2020, quando o Ballet Contemporâneo do Norte lança uma convocatória de natureza emergencial com o objetivo de fazer frente às dificuldades económicas que o setor das artes enfrentaria com a primeira vaga da pandemia. A chamada resultou na seleção de um grupo de criadores, intérpretes, formadores, investigadores, técnicos e produtores das várias áreas artísticas, que haveria de produzir e apresentar trabalhos performativos pensados para o contexto online. Na medida exata das circunstâncias de absoluta excepção que rodeou o processo de partilha, o projeto juntou num website um conjunto de pequenas “iniciações” para projetos por vir, fabricadas em regime de colaboração por agentes que nunca haviam trabalhado com o Ballet Contemporâneo do Norte. À distância de dois anos, queremos continuar a alimentar a poderosa fragilidade que nos uniu em Abril e Maio de 2020. Aos participantes de 2020 juntar-se-ão outros artistas e colaboradores pessoal e profissionalmente próximos do nosso trabalho. Uma nova (RE=)Iniciação, que é também uma procura (sempre nova) de impulsos outros para melhor podermos e sabermos estar-juntos. Ou como voltar a potenciar a conexão emocional em tempos de (pós-)distanciamento social. Rogério Nuno Costa Artwork © Jani Nummela Diário de Bordo por Diogo Sottomayor Re=iniciar. Re=fazer. Re=imaginar. Re=encontrar. A organização e curadoria do Ballet Contemporâneo do Norte trouxe a Santa Maria da Feira um conjunto de 24 artistas que se espalharam pelos espaços convencionais e não convencionais da cidade – e alguns deles, em mais do que um espaço – mas isso será discutido mais à frente. Isto não é um olhar exaustivo sobre todos os trabalhos, não é uma crítica, e também não é uma memória descritiva, nem tem a pretensão de o ser. Este texto é uma reflexão de alguém que esteve presente neste encontro e que procura, aqui, neste espaço, com esta distância temporal, um olhar de novo para o que ficou, o que aconteceu. O encontro de tantas visões artísticas poderia resultar apenas numa cacofonia de ideias, porém, tal não aconteceu. O espaço de generosidade que cada artista propôs demonstrava que a ideia deste re=iniciar não era apenas uma repetição ou representação, mas sim uma oportunidade de re=ativar uma nova forma de fazer, um novo olhar, passado este tempo sobre a pandemia que, a cada dia, parece mais distante. Sendo isto uma reflexão pessoal de um observador externo, proponho ao leitor um contrato de ficção. Levarei quem quiser caminhar textualmente comigo por estas memórias. Porém, para que a relação resulte, preciso que algumas vulnerabilidades fiquem expostas, pelo que tenho de as mostrar antes de começarmos esta caminhada: Há performances que não consegui ver: Miguel Pereira, Mariana Barros, Nélson d’Aires e Henrique Fernandes. Há performances que não vi porque participei nelas. E ver de dentro não é o mesmo do que ver de fora. Há performances onde estão antigos professores, amigos de longa data e ex-colegas de faculdade. Há performances que não ouvi. Vi entendimentos performativos de quem a ouviu. Há performances cuja construção vi de fora, mas que no dia da apresentação mergulhei com essas pessoas dentro. Há performances onde depois tive acesso ao texto e outras onde apenas tenho a memória do que foi dito. Há performances que considero que não devo escrever sobre elas. Não temos de nos ligar a tudo o que vemos. Cada gesto deste encontro é arte e a arte é subjetiva. Como tal, não quis criar uma ligação artificial. Dito isto, podemos começar, espero que estejam confortáveis. Encontramo-nos no ponto 9. Artwork © Jani Nummela Primeiro Dia Marina Leonardo convoca-nos através de uma coreografia simples: “Cicatriz. Andar. Queda. Dança”. E ocorrem uma série de encontros, despedidas, procuras e gestos que nos levem a esse estado de espírito. A construção de algo que, tal como a cadeira da verdade, pode ser verdadeira ou não, essa cadeira é apenas um dispositivo, que nos mostra que o ato de partilhar é mais importante do que saber se é verdade ou não. Uma história não se esgota no seu grau de veracidade. Pausa para almoço. Depois, o encontro com a instalação de Miguel Refresco: “Porque é que aqui o guardanapo é de pano e temos de o colocar no colo? Com alguma relutância, posso dizer-te que há locais onde devemos agir com formalidade e convencionou-se que nestes contextos, sendo de pano, o guardanapo havia de estar sobre as pernas”. Aqui, já sentados, podemos refletir sobre convenções sociais enquanto os elementos naturais a enformam. A areia não é apenas areia. A luz do sol, tal como as convenções, também desaparece quando já não é necessária. O texto desta instalação remete-nos para um quotidiano ao mesmo tempo que há uma partilha de alguém que detesta mesas na diagonal nos cafés. É hora de levantar, preparar as sapatilhas e levar cimento. Mudança de media. Já não estamos numa sala de ensaio. Já não é uma galeria de um museu. Carminda Soares, no seu audiowalk, começa: “Construir um bunker dentro da minha cabeça. Bem lá no fundo do cérebro, um bunker. Podem tocar à campainha, gritar, chamar por mim, estou dentro dum bunker. Dentro da minha cabeça ninguém me encontra.” E daqui, o público é convidado a correr pelas ruas da cidade, enquanto o texto é sussurrado a cada um durante o percurso. Passam pelo estádio com luz rosa para auxiliar no processo de crescimento da relva, passam pela tendo do circo, passam pelas traseiras do circo até à camioneta, que os leva de volta ao ponto de encontro. Carminda leva o seu público atrás dela a correr, e o texto corre nos ouvidos dos espetadores. A mistura das ruas da cidade e dos locais por onde passam leva o público, aquele coletivo, à exaustão. O texto, também ele, repercute a exaustão, terminando: “Há um sistema de poder em todas as parte do mundo. Uns acima dos outros. Mortes que valem menos que outras”. A camioneta chegou. Da camioneta passamos para a cadeira. E da cadeira Catarina Real termina o primeiro dia com a apresentação do seu livro. Livro esse que parte para a construção experimental de uma narrativa através de recortes de uma coleção de suplementos culturais do Ípsilon, suplemento do jornal Público. Recortes que a autora partilha, agora em livro, mas cuja composição permite novas leituras; um trabalho que evoca, numa certa medida, a obra de Ana Hatherly, deixando-nos olhar para o texto de uma forma mais experimental, numa combinação de palavras para criar uma outra coisa que vai para além do seu significado. - - - Artwork © Jani Nummela Segundo Dia Manhãs. As manhãs deste encontro, a partir daqui, repetem-se até ao dia da apresentação do produto “final” , no domingo, com Daniel Pizamiglio. Olhar externo. “Olhar para o outro como se fosse a primeira e a última vez”, propõe Daniel Pizamiglio. As pessoas dançam. Eu escrevo. Sobre. Sobre diferença do outro. Sobre dois encontros. Um em 2009 e outro em 2019. Sobre composição em tempo real. Sobre olhar como se fosse a primeira vez. Sobre olhar como se fosse a última vez. Sobre repulsa. Sobre novas formas de estar-juntos. O que é olhar para as coisas como se fosse a última vez? Um encontro de partilha, papel e caneta. Pausa para almoço. O próximo encontro é sobre colecionar. [Colocar a música "Lambada", de Kaoma, 1989] Pedro Augusto (arquivo 'Found Tapes' Porto): “Trata um conjunto de resíduos fonográficos derivados do suporte áudio-magnético, habitualmente designado por cassete, recoletados das ruas da cidade entre 2004 e 2019.” Durante a performance, escutamos alguns destes registos: a mítica música "Lambada" parece ser uma constante em várias das cassetes, mais naquelas que são encontradas na praia, na verdade, nas fitas encontradas pelo artista. Dentro do seu espólio: “Há músicas de diversos estilos e épocas, gravações caseiras, cursos de línguas ou até gravações de memory data, como jogos ou software.” A extensão da fita corresponde a um determinado tempo de gravação. A fita, nas mãos do público, é tempo sonoro gravado. Sons que persistem no tempo através da fita para poderem ser re=iniciados quando ativados novamente. Desligamos a música de Kaoma. Agora vamos jantar. Espectáculo da noite. Passamos para Banquete (Júlio Cerdeira): “Olhar sobre o corpo humano como matéria desantropomorfizada, um despir consecutivo da pele dos corpos, que a cada camada se mostram menos escurecidos e mais pigmentados.” Com efeito, o criador propõe uma nova visão sobre o corpo, nomeadamente através da justaposição de dois corpos. A influência de criadores como Marlene Freitas Monteiro e Dimitris Papaioannou no trabalho revela-se através de alguns gestos em cena. Uma proposta que torna a luz o elemento principal neste jogo do esconder–revelar, enquanto os dois corpos comunicam entre si e colocam em evidência a violência de um sobre o outro. - - - Artwork © Jani Nummela Terceiro Dia “O meu medo. Eu acho que não é um medo. Os nossos corpos não duram para sempre. Entre corpo e subjetividade. Entre subjetividade e tecnologia. Onde é que acaba uma coisa e começa a outra?” A nossa tarde começou com Joclécio Azevedo, numa espécie de tratado entre arte e tecnologia. Através do texto, em vários media, e criado de diversas formas, o criador questiona-se sobre a utilização da tecnologia em todas as dimensões da nossa vida. O interessante aqui é que o criador não dá respostas, mas faz perguntas. Questiona, junto de nós, e num movimento de proximidade – no final, a filmagem é apenas a sua boca enquanto diz um texto, também ele com o auxílio da tecnologia – uma alusão que poderíamos associar a Beckett, mas que, na verdade, é uma utilização da tecnologia em prol de um discurso que vai vivendo na peça. Como se não bastasse, Joclécio tem também uma proposta de expansão. O texto que é dito, e projetado, perde as suas características de informação, passando a cenografia; aliás, como defende Rachel Hann na sua obra sobre a cenografia expandida, podemos atestar que a cenografia, por vezes, não é palpável. As ideias e os pensamentos, apesar de terem um medium, não é obrigatório que sejam usados apenas de uma forma. - - - Artwork © Jani Nummela Quarto Dia O Coletivo Suspeito tinha como proposta: “um espaço liminar entre cumplicidade e contemplação”. Para tanto, através de aparelhos eletrónicos aplicados numa parte do corpo da pessoa que o quisesse utilizar, esse mesmo corpo, através do movimento, distância do recetor, e intensidade, criava uma paisagem sonora. Aqui, neste espaço, o criador convoca a sua coreografia, ou apenas movimentos que improvisa para os partilhar de forma externa e, de imediato, recebe um estímulo da máquina. A partir daqui, a relação é construída pela interação estabelecida entre quem mexe e a máquina que reage, por vezes em duplas, onde há uma nova camada, os dois corpos que interagem e criam um jogo, sendo certo que o olhar de ambos também é influenciado pela reação da máquina. Uma espécie de tradução de movimento para som. Universo que foi explorado por outra criadora, mas que não está neste dia. Por agora, resta-nos devolver o equipamento para irmos à multiversidade. Saída. Há uma coisa certa quando entramos num espaço criado por Rogério Nuno Costa: qualquer coisa pode acontecer. Aliás, para quem acompanha o seu trabalho, sabe que ele pode “ir a nossa casa”. Pode cozinhar para nós. Também pode aparecer noutras criações sobre festas de anos. Ou pode surgir como júri de um espetáculo sobre Eurovisão. Ou pode estar todo vestido de verde. Pode estar a falar, ou pode estar em silêncio. Pode apenas estar. Um trabalho dele não se esgota no texto, na forma ou no local. Rogério trabalha em qualquer lugar, e, por isso, nada melhor que estarmos, agora, num tempo qualquer. Podemos escolher se é agora, se será daqui a muitos anos, ou se até já foi num tempo passado (e encontramo-nos, agora, numa espécie de eco do passado). Rogério não tem a intenção de um tempo. A multiversidade ainda não tem espaço. Mas espera vir a ter. Mas não faz questão que tenha. A explicação é complexa, mas Rogério explica-a detalhadamente, numa autêntica tese; uma tese que, não obedecendo à série de formalismos que o ritual tese obriga, é então a especulação de uma tese. Mas na verdade é uma tese. Ele escreveu. Ele citou. Ele relacionou. E questionou. Até que ponto este “oficial”, este “académico”, este “a sério” vai ficar preso a uns monumentos brutos, que, como bem sabemos, estão podres? Tal como o rei vai nu, também sabemos que a universidade vai nua. E devemos continuar a perpetuar esta ideia de sabedoria centrada apenas num lugar? A autora norte-americana Michelle Visage é peremptória: "Não". A universidade não pode continuar a aparecer em todos os locais como um pedaço de tecido. Porque é apenas isso. E um pedaço de tecido não é um vestido”. Tal como a universidade não devia ser apenas calças e gravatas; mas isto das roupas é muito mais complexo... Complexo é também o pensamento de Rogério (nota de rodapé: Isto é dito porque sim): “O texto que estou a ler é uma emanação, etérea e intangível, da tese que não vou, não quero, ou não posso ler, e projeta-se em várias direções temporais e emocionais: para trás dela, para a frente dela, para dentro dela. Nunca por causa dela. Nunca sobre ela. O avesso da tese”. Podem agora jogar pedra, tesoura e papel. Eu ajudo: na próxima jogada vou escolher papel. No meio do aleatório, pode saber bem uma certeza. Pausa para jantar e pensar. - - - Peça da noite. [Nota: neste espectáculo eu participei como intérprete. Portanto, o que vão ler a seguir não é um olhar de fora, exterior. É um olhar de dentro.] “Trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar. As preocupações são aflições do espírito adaptadas à era capitalista. Não estamos mais preocupados com os devaneios, as angústias e com o mistério da existência. Nossas preocupações são as preocupações da agenda, se iremos ter aonde morar, se iremos ter onde dormir e se iremos ter o que comer. Trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar.” Estas são as primeiras palavras que Vinicius Massucato entrega ao público. Eu espero. Ele parte a cadeira. Eu espero. Conheço o Vinicius há muitos anos. Mas hoje não o vejo de fora. Hoje é para performar com ele. Ele continua a falar. Há texto na tela. Conheço-o há tantos anos, já o vi fazer tanta coisa, e hoje estou aqui. À espera. Uma flor. Uma mochila. Um casaco. Chegou a deixa. O beijo aconteceu. O texto foi dito. A música acabou. No fim, alguns dos primeiros comentários são sobre o beijo. Perguntei-me, assim como quem não quer a coisa, quantas vezes vi beijos normativos em cena serem tão comentados. Não me recordo de nenhum. Duas pessoas lidas como homens em cena a beijarem-se, parece, ainda, ser necessário. É um ato político. - - - Artwork © Jani Nummela Quinto Dia Maria R. Soares e Antonio Marotta exploram som e movimento. A proposta é criar “paisagem onde som, espaço e gesto se diluem numa só matéria, numa invocação aos grandes vazios cósmicos. Vazio como potencial lugar não rígido onde o inesperado pode tomar forma e revelar-se.” O dispositivo proposto coloca Maria a comunicar através de dois media: o seu corpo e o movimento do seu corpo que provoca um som. Isto leva-nos a meditar sobre as potencialidades de movimento e som, remetendo para um ambiente contemplativo sem forma. Uma espécie de voltar à caverna onde o gesto primitivo não se esgota em si mesmo, mas deixa um lastro sonoro com uma determinada qualidade. Um espaço que reverbera no público de diferentes formas. Um objeto que não pretende ser mais do que é: um exercício de expansão do medium som aliado à géstica da dança, e cujo resultado não é um fim, mas um processo. Pequena pausa. Mariana Tengner Barros surge em cena. Sentimos uma conexão. Sentimos que não há uma vontade de binarizar. Tudo é fluido, tal como o movimento do saco. O som do saco, é também ele uma ode. Há o gesto de Mariana. A cor do espaço cénico. Uma canção. A pretensão é ser uma ode e a criadora surge-nos como uma criatura marítima que transmite melodias. Será a letra importante? Quererá remeter para um espaço aquático do futuro? A criadora indica que são “práticas de estados de espírito e a sua relação com o estado das coisas.” E nós estamos com ela. Nessa exploração, nessa expansão. Já não é apenas dança. Isto podia ser um número de uma drag queen. Ou podia ser outro local qualquer. É sobre transformação. Sobre constante devir e ser. Liberta. E liberta os outros dos fardos da interpretação. No fim, o melhor: um Adeus Performativo. - - - Artwork © Jani Nummela Sexto Dia (e último) Olhar interno. Se num primeiro momento elas dançavam e eu escrevia, hoje foi dia de dançar com estas pessoas: Daniel, Susana, Carminda, dois Diogos e Andresa. Numa pequena apresentação sobre o resultado final do workshop conduzido pelo Daniel Pizamiglio ao longo de toda a semana do Encontro, o nosso objetivo tinha uma pequena partitura: desconhecido, check in do nosso dia, procurar o outro. Foi sobre partilha dos corpos e sobre desconhecer esse mesmo corpo. Foi sobre gestos, foi sobre lembrar e esquecer, e voltar a aprender esses mesmos gestos. Foi sobre seis corpos que partilham um espaço expandido com o público, e vão procurando e esquecendo, até chegarem a uma conclusão, rítmica, onde a conexão entre os corpos parece evidente. Pausa. Tiago Rosário, através da instalação vídeo "R-RE-RES-REST-RESTA-RESTAR-RESTART", coloca uma série de imagens em relação e em repetição. Uma clara alusão à forma como as notícias são dadas, mastigadas, e repetidas novamente. “Quantas vezes veremos algo? Quantas vezes veremos algo novo? Quantas vezes veremos algo novo novamente?” E a nossa experiência enquanto público, junto de símbolos tão fortes (como os quadrados com imagens em movimento do Zoom e a memória da pandemia), é de refletir sobre os papéis dos media na era da (des)informação. Sobretudo, tendo em conta o cariz e o aproveitamento de algumas notícias, a pergunta é mesmo essa: quantas vezes veremos algo novo (mas que é o mesmo) novamente? Pausa para almoço. Corpo acusa algum cansaço. Assim que Filipa Duarte surge em cena há uma coisa inegável: a presença da criadora é avassaladora. Dotada de uma técnica e géstica da dança irrepreensível, Filipa consegue ir mais longe e mostrar também um lugar de partilha e vulnerabilidade. Utilizando açúcar, flores e objetos do cotidiano, ao mesmo tempo que estende uma grande folha em branco à frente dxs espetadorxs, Filipa permite que o público se inscreva naquele espaço. Um objeto cénico que está em devir e transformação constante. O trabalho é especialmente curioso, porque se tratar de alguém que esteve a desempenhar funções de produção para o Encontro, ao mesmo tempo que preparava esta apresentação. E, nessa contaminação de dois mundos, vamos entendendo um pouco melhor o entendimento de Vânia Rodrigues (uma das pensadoras ativas da produção em Portugal) sobre o conceito de produção-criativa. Filipa demonstra que os papéis de bailarina, criadora e produtora não são estanques. Ela consegue, através daquela mesma folha em branco, demonstrar que (re)imaginar a nossa história ou criar narrativas é um exercício amplo, e que pode ele também ser partilhado: “Quero realmente dizer alguma coisa mas, por medo, oculto a última palavra porque não tenho coragem de a exteriorizar e culpo a falta de tempo com um descaramento cobarde. E quanta impertinência eu escrever isto. Para depois o dançar. Ou depois de o dançar. Ou a dançar.” Pausa. O trabalho de Andresa Soares deu-me luta no processo da escrita. Tinha muitas questões: Escrevo só a partir do que vi? Escrevo depois de ler o texto que era dito aos performers que atuaram para nós? Como posso escrever sobre pessoas que estiveram a semana toda a conviver connosco, cada uma no seu universo, e agora se justapõem para criar a peça da Andresa? A resposta demorou, mas chegou. Escreverei a partir da visão e não do texto. A escrita não leu o texto. Foi uma decisão. Vários são os criadores que estão aqui: Susana Otero, Miguel Pereira, Rogério Nuno Costa, Filipa Duarte, Daniel Pizamiglio, Diogo M. Santos, Margarida Montenÿ, Maria R. Soares, Carolina Canteli. Quase todos são participantes do Encontro; quem viu os seus trabalhos, sabe quão diferentes são os universos criativos de cada um. E isso traz camadas à visualização esta performance: conhecer o trabalho de cada participante e ver, agora, como o mesmo estímulo textual pode trazer resultados tão distintos àqueles corpos. É irrelevante a questão da distinção entre performer, bailarino, atriz... Na verdade, não há etiquetas aqui. A experiência estética do objeto baseia-se numa suspensão da crença: acreditamos que todos os áudios estão sincronizados e que, muito provavelmente, cada uma das pessoas que ouve se esquece que tem um público. No final, fica a dúvida sobre a duração do dispositivo, mas a certeza que os participantes foram muito generosos no seu contributo. Pausa. Último trabalho. Uma sala cheia de cadeiras. Uma sala cheia de cadeiras e Valentina Parravicini está lá. Uma sala cheia de cadeiras e Valentina vai nomeando cada uma das cadeiras. Seguindo a pergunta “o que faz uma bailarina quando o coreógrafo não está presente?”, a criadora evoca uma série de memórias e leva-nos consigo para o seu universo criativo e para algumas das suas inquietações. Uma sala cheia de cadeiras. Uma instalação de cadeiras. A criadora dança. Ela monta. As cadeiras estão num limbo de equilíbrio. Ela dança. Há uma evocação de memórias e documentações que não são materiais. Há apenas uma sala cheia de cadeiras vazias. Ela dança. Ela terminou. - - - Diogo Sottomayor Artwork © Jani Nummela Álbum de Recordações (diário vídeo-fotográfico produzido pelo Colectivo Suspeito durante o Encontro) "ZAUMFLUX", de Henrique Fernandes (registo vídeo de Colectivo Suspeito, 2 de novembro de 2022) "Ensaio dirigido a...", de Andresa Soares (registo vídeo de Colectivo Suspeito, 6 de novembro de 2022) Artwork © Jani Nummela
- RE=INICIAR | Dia # 6
O início e o fim de "Ensaio dirigido a...", de Andresa Soares. Registo fotográfico de Alexandra Couto. Praça Central do Imaginarius Centro de Criação, 6 de novembro de 2022. Diário de Bordo por Diogo Sottomayor Sexto dia, e último Olhar interno. Se num primeiro momento elas dançavam e eu escrevia, hoje foi dia de dançar com estas pessoas: Daniel, Susana, Carminda, dois Diogos e Andresa. Numa pequena apresentação sobre o resultado final do workshop conduzido pelo Daniel Pizamiglio ao longo de toda a semana do Encontro, o nosso objetivo tinha uma pequena partitura: desconhecido, check in do nosso dia, procurar o outro. Foi sobre partilha dos corpos e sobre desconhecer esse mesmo corpo. Foi sobre gestos, foi sobre lembrar e esquecer, e voltar a aprender esses mesmos gestos. Foi sobre seis corpos que partilham um espaço expandido com o público, e vão procurando e esquecendo, até chegarem a uma conclusão, rítmica, onde a conexão entre os corpos parece evidente. "Primeiro Nada, Depois Nada", apresentação informal do resultado do workshop conduzido por Daniel Pizamiglio ao longo de toda a semana do Encontro na Sala de Ensaios do Cineteatro António Lamoso. Com a participação de Susana Otero, Carminda Soares, Diogo M. Santos, Andresa Soares, Daniel Pizamiglio e Diogo Sottomayor. Música ao vivo de Usof (João Rochinha). Registo fotográfico e vídeo de Rogério Nuno Costa. Cineteatro António Lamoso (Palco), 6 de novembro de 2022. Pausa. Tiago Rosário, através da instalação vídeo "R-RE-RES-REST-RESTA-RESTAR-RESTART", coloca uma série de imagens em relação e em repetição. Uma clara alusão à forma como as notícias são dadas, mastigadas, e repetidas novamente. “Quantas vezes veremos algo? Quantas vezes veremos algo novo? Quantas vezes veremos algo novo novamente?” E a nossa experiência enquanto público, junto de símbolos tão fortes (como os quadrados com imagens em movimento do Zoom e a memória da pandemia), é de refletir sobre os papéis dos media na era da (des)informação. Sobretudo, tendo em conta o cariz e o aproveitamento de algumas notícias, a pergunta é mesmo essa: quantas vezes veremos algo novo (mas que é o mesmo) novamente? "R-RE-RES-REST-RESTA-RESTAR-RESTART", instalação-vídeo e Tiago Rosário no Foyer do Cineteatro António Lamoso, 4 a 6 de novembro de 2022. Registo fotográfico da responsabilidade do Cineteatro António Lamoso. Pausa para almoço. Corpo acusa algum cansaço. Assim que Filipa Duarte surge em cena há uma coisa inegável: a presença da criadora é avassaladora. Dotada de uma técnica e géstica da dança irrepreensível, Filipa consegue ir mais longe e mostrar também um lugar de partilha e vulnerabilidade. Utilizando açúcar, flores e objetos do cotidiano, ao mesmo tempo que estende uma grande folha em branco à frente dxs espetadorxs, Filipa permite que o público se inscreva naquele espaço. Um objeto cénico que está em devir e transformação constante. O trabalho é especialmente curioso, porque se tratar de alguém que esteve a desempenhar funções de produção para o Encontro, ao mesmo tempo que preparava esta apresentação. E, nessa contaminação de dois mundos, vamos entendendo um pouco melhor o entendimento de Vânia Rodrigues (uma das pensadoras ativas da produção em Portugal) sobre o conceito de produção-criativa. Filipa demonstra que os papéis de bailarina, criadora e produtora não são estanques. Ela consegue, através daquela mesma folha em branco, demonstrar que (re)imaginar a nossa história ou criar narrativas é um exercício amplo, e que pode ele também ser partilhado: “Quero realmente dizer alguma coisa mas, por medo, oculto a última palavra porque não tenho coragem de a exteriorizar e culpo a falta de tempo com um descaramento cobarde. E quanta impertinência eu escrever isto. Para depois o dançar. Ou depois de o dançar. Ou a dançar.” Pausa. "Pro/dutiv-ação" de Filipa Duarte. Registo fotográfico de Alexandra Couto. Black Box do Imaginarius Centro de Criação, 6 de novembro de 2022. O trabalho de Andresa Soares deu-me luta no processo da escrita. Tinha muitas questões: Escrevo só a partir do que vi? Escrevo depois de ler o texto que era dito aos performers que atuaram para nós? Como posso escrever sobre pessoas que estiveram a semana toda a conviver connosco, cada uma no seu universo, e agora se justapõem para criar a peça da Andresa? A resposta demorou, mas chegou. Escreverei a partir da visão e não do texto. A escrita não leu o texto. Foi uma decisão. Vários são os criadores que estão aqui: Susana Otero, Miguel Pereira, Rogério Nuno Costa, Filipa Duarte, Daniel Pizamiglio, Diogo M. Santos, Margarida Montenÿ, Maria R. Soares, Carolina Canteli. Quase todos são participantes do Encontro; quem viu os seus trabalhos, sabe quão diferentes são os universos criativos de cada um. E isso traz camadas à visualização esta performance: conhecer o trabalho de cada participante e ver, agora, como o mesmo estímulo textual pode trazer resultados tão distintos àqueles corpos. É irrelevante a questão da distinção entre performer, bailarino, atriz... Na verdade, não há etiquetas aqui. A experiência estética do objeto baseia-se numa suspensão da crença: acreditamos que todos os áudios estão sincronizados e que, muito provavelmente, cada uma das pessoas que ouve se esquece que tem um público. No final, fica a dúvida sobre a duração do dispositivo, mas a certeza que os participantes foram muito generosos no seu contributo. Pausa. "Ensaio dirigido a...", performance de Andresa Soares com a participação de Carolina Canteli, Daniel Pizamiglio, Diogo M. Santos, Filipa Duarte, Margarida Montenÿ, Maria R. Soares, Miguel Pereira, Rogério Nuno Costa e Susana Otero. Registo fotográfico de Alexandra Couto. Praça Central do Imaginarius Centro de Criação, 6 de novembro de 2022. Último trabalho. Uma sala cheia de cadeiras. Uma sala cheia de cadeiras e Valentina Parravicini está lá. Uma sala cheia de cadeiras e Valentina vai nomeando cada uma das cadeiras. Seguindo a pergunta “o que faz uma bailarina quando o coreógrafo não está presente?”, a criadora evoca uma série de memórias e leva-nos consigo para o seu universo criativo e para algumas das suas inquietações. Uma sala cheia de cadeiras. Uma instalação de cadeiras. A criadora dança. Ela monta. As cadeiras estão num limbo de equilíbrio. Ela dança. Há uma evocação de memórias e documentações que não são materiais. Há apenas uma sala cheia de cadeiras vazias. Ela dança. Ela terminou. Diogo Sottomayor "O Coreógrafo Não Está Aqui" de Valentina Parravicini. Apresentação informal após a residência de uma semana na Sala de Conferências do INATEL Feira. Registo fotográfico de Alexandra Couto e vídeo de Rogério Nuno Costa. 6 de novembro de 2022. Registo fotográfico realizado por Jani Nummela (6 de novembro de 2022). Artistas: Daniel Pizamiglio, Filipa Duarte, Andresa Soares e Valentina Parravicini. Espaços: Cineteatro António Lamoso (Palco), Imaginarius Centro de Criação (Black Box e Praça Central) e INATEL Feira (Sala de Conferências). Sobre "Ensaio dirigido a..." de Andresa Soares por Alexandra Couto Sempre igual, sempre diferente e o público nunca farto. Tal como o melhor design é o minimal, também o melhor bailado pode ser o mais primário – sem música ou diálogos, sem passos definidos, sem guarda-roupa ou adereços. Naquele despojamento idealizado por Andresa Soares a partir de um set mínimo de instruções, há un petit peu de génio, expresso na liberdade que é permitida aos bailarinos, entregues unicamente ao seu instinto, bel-prazer e perícia. O desempenho do coletivo é totalmente absorvente e, dentro dele, cada desempenho individual é um solo próprio. Goosebumps all over, uma e outra vez. E então quando do silêncio se erguem aqueles poucos compassos do “Palladio” de Karl Jenkins… É a apoteose, a gratidão. Que privilégio inesperado foi ter assistido a esta manifestação de arte e humanidade. (Pronuncie-se à francesa: ) Bravo! BRAVO! BRA-VO! "Ensaio dirigido a..." de Andresa Soares. Registo vídeo de Alexandra Couto. Praça Central do Imaginarius Centro de Criação, 6 de novembro de 2022. "Primeiro Nada, Depois Nada" de Daniel Pizamiglio. Registo fotográfico da responsabilidade do Cineteatro António Lamos (6 de novembro de 2022):
- RE=INICIAR | Dia # 3
"Aqui e Agora", performance de Nelson d'Aires, Cineteatro António Lamoso (Palco), 3 de novembro de 2022. Fotografias © Cineteatro António Lamoso. Diário de Bordo por Diogo Sottomayor Terceiro dia “O meu medo. Eu acho que não é um medo. Os nossos corpos não duram para sempre. Entre corpo e subjetividade. Entre subjetividade e tecnologia. Onde é que acaba uma coisa e começa a outra?” A nossa tarde começou com Joclécio Azevedo, numa espécie de tratado entre arte e tecnologia. Através do texto, em vários media, e criado de diversas formas, o criador questiona-se sobre a utilização da tecnologia em todas as dimensões da nossa vida. O interessante aqui é que o criador não dá respostas, mas faz perguntas. Questiona, junto de nós, e num movimento de proximidade – no final, a filmagem é apenas a sua boca enquanto diz um texto, também ele com o auxílio da tecnologia – uma alusão que poderíamos associar a Beckett, mas que, na verdade, é uma utilização da tecnologia em prol de um discurso que vai vivendo na peça. Como se não bastasse, Joclécio tem também uma proposta de expansão. O texto que é dito, e projetado, perde as suas características de informação, passando a cenografia; aliás, como defende Rachel Hann na sua obra sobre a cenografia expandida, podemos atestar que a cenografia, por vezes, não é palpável. As ideias e os pensamentos, apesar de terem um medium, não é obrigatório que sejam usados apenas de uma forma. Excerto de "Cartas de Recomendação", de Joclécio Azevedo. Filmagem de Alexandra Couto. Blackbox do Imaginarius Centro de Criação, 3 de novembro de 2022. Diogo Sottomayor Registo fotográfico realizado por Jani Nummela (3 de novembro de 2022). Artistas: Joclécio Azevedo e Miguel Pereira. Black Box do Imaginarius Centro de Criação. Sobre "A Dança da minha História" de Miguel Pereira por Alexandra Couto Dizem que os melhores são também os mais humildes. É discutível, sobretudo quando o estômago não alinha em falsas modéstias e a investigação médica vem comprovando que a sanidade depende da (tendencialmente pouco apreciada) franqueza. A humildade pode, por isso, ser clinicamente desaconselhada. Sã mesmo, a sério, pode ser é a vaidade. Mas mesmo que essa seja justa, merecida e até racional, já a sua aprovação por terceiros é outra conversa, porque o reconhecimento externo do mérito depende sempre de análises subjetivas, tão aleatórias quanto o gosto pessoal. E é por isso que “A dança da minha história”, pelo bailarino e coreógrafo Miguel Pereira, tem a sorte de não precisar de críticas adjetivadas e de se bastar com os factos. Um facto, o primeiro, é que essa conferência-performance é a cronologia da carreira de um artista com mais de 20 anos de experiência. Outro facto é que esse artista assume aí em que medida foi influenciado e inspirado por colegas reais e por criadores afetos ao imaginário coletivo. Facto ainda mais evidente é que ele expõe os seus sucessos e fracassos com o público, numa narrativa sem peneiras e despojada daquela sonsice que são os pruridos de isenção ou magnanimidade. Miguel Pereira é quem é, gosta de quem gosta, quer o que quer e, pelo menos durante aquelas duas horas, parece passar bem sem a validação dos outros. Muitas conclusões se podem tirar daí. Mas a minha preferida é que este sneak peek aos bastidores da sua carreira é serviço público. Ser-vi-ço pú-blico. Este confessionário pessoal é a materialização literal, concreta e exata da «formação de públicos», essa expressão cliché e pastiche que, de tanto pontuar agora qualquer discurso de estratégia cultural, já perdeu sentido real e, na prática, soa a nada. O que Miguel Pereira ali fez foi, de facto, formar aquele público específico. Ensinou-lhe coisas, revelou-lhe técnicas e práticas, apontou-lhe riscos e oportunidades, admitiu medos e handicaps, deixou conselhos e avisos. Deu ao público mais conhecimento do que aquele com que o público lá chegou. Se foi politicamente correto ou não, elegante ou não, outro-adjetivo-qualquer ou não, que decida cada espectador e formando. Mas, the fact remains, Miguel Pereira prestou um serviço pedagógico àquela plateia e fê-lo com a generosidade de quem se expõe para ajudar os outros nos seus percursos e escolhas. “A dança da minha história” devia andar de porta em porta, de escola em escola, de associação cultural em associação cultural, a abrir os olhos a muita gente. Para uns saberem no que se metem quando decidem seguir uma vida de palco e outros perceberm o tanto que está por trás daqueles glamorosos e escassos minutos de cena. "A Dança da minha História", de Miguel Pereira; registo vídeo/fotográfico de Alexandra Couto na Black Box do Imaginarius Centro de Criação, 3 de novembro de 2022: Alexandra Couto Aqui e Agora Vê-se sempre a distância numa fotografia. Ela é o intervalo entre lugar e tempo: o lugar em que é feita e o tempo em que é dada a ver. Essa distância que é dada a ver é um salto, a sua presença permite a de outra coisa. “Aqui e Agora” é uma apresentação-performance de fotografias que Nelson d’Aires ensaia em palco a partir do arquivo fotográfico que criou entre 2021 e 2022 no território onde nasceu e viveu a maior parte da sua vida. Nelson d'Aires "Aqui e Agora", fotografias promocionais de Nelson d'Aires.
- RE=INICIAR | Dia # 2
"Primeiro Nada, Depois Nada", workshop de Daniel Pizamiglio, registo de Diogo Sottomayor (Sala de Ensaios do Cineteatro António Lamoso), 2.11.2022. Diário de Bordo por Diogo Sottomayor Manhãs. As manhãs deste encontro, a partir daqui, repetem-se até ao dia da apresentação do produto “final” , no domingo, com Daniel Pizamiglio. Segundo dia Olhar externo. “Olhar para o outro como se fosse a primeira e a última vez”, propõe Daniel Pizamiglio. As pessoas dançam. Eu escrevo. Sobre. Sobre diferença do outro. Sobre dois encontros. Um em 2009 e outro em 2019. Sobre composição em tempo real. Sobre olhar como se fosse a primeira vez. Sobre olhar como se fosse a última vez. Sobre repulsa. Sobre novas formas de estar-juntos. O que é olhar para as coisas como se fosse a última vez? Um encontro de partilha, papel e caneta. "Primeiro Nada, Depois Nada", workshop de Daniel Pizamiglio, registo de Diogo Sottomayor (Sala de Ensaios do Cineteatro António Lamoso), 2.11.2022. Pausa para almoço. O próximo encontro é sobre colecionar. Colocar a música "Lambada", de Kaoma (1989): Pedro Augusto (arquivo 'Found Tapes' Porto): “Trata um conjunto de resíduos fonográficos derivados do suporte áudio-magnético, habitualmente designado por cassete, recoletados das ruas da cidade entre 2004 e 2019.” Durante a performance, escutamos alguns destes registos: a mítica música "Lambada" parece ser uma constante em várias das cassetes, mais naquelas que são encontradas na praia, na verdade, nas fitas encontradas pelo artista. Dentro do seu espólio: “Há músicas de diversos estilos e épocas, gravações caseiras, cursos de línguas ou até gravações de memory data, como jogos ou software.” A extensão da fita corresponde a um determinado tempo de gravação. A fita, nas mãos do público, é tempo sonoro gravado. Sons que persistem no tempo através da fita para poderem ser re=iniciados quando ativados novamente. Desligamos a música de Kaoma. - - - Agora vamos jantar. Taverna do Xisto, Santa Maria da Feira, foto de Rogério Nuno Costa, 2.11.2022. Espectáculo da noite. Passamos para Banquete (Júlio Cerdeira): “Olhar sobre o corpo humano como matéria desantropomorfizada, um despir consecutivo da pele dos corpos, que a cada camada se mostram menos escurecidos e mais pigmentados.” Com efeito, o criador propõe uma nova visão sobre o corpo, nomeadamente através da justaposição de dois corpos. A influência de criadores como Marlene Freitas Monteiro e Dimitris Papaioannou no trabalho revela-se através de alguns gestos em cena. Uma proposta que torna a luz o elemento principal neste jogo do esconder–revelar, enquanto os dois corpos comunicam entre si e colocam em evidência a violência de um sobre o outro. Fim do segundo dia. Diogo Sottomayor Registo fotográfico realizado por Jani Nummela (2 de novembro de 2022). Artistas: Pedro Augusto, Henrique Fernandes e Banquete (Júlio Cerdeira). Espaços: Black Box do Imaginarius Centro de Criação e Cineteatro António Lamoso (Palco). Sobre "ZAUMFLUX" de Henrique Fernandes por Alexandra Couto Concebido especificamente para o Encontro de Artes Performativas do Ballet Contemporâneo do Norte, “Zaumflux” é um concerto, uma performance, um laboratório. As quase 20 peças que Henrique Fernandes distribui pelo chão, todas com aparência tosca e funções inicialmente indiscerníveis, fazem lembrar uma oficina de eletromecânica ou aeromodelismo, mas o que na penumbra mais têm em comum é que emitem sons e luz, tinem, reverberam, atuam, reagem. Nesse labirinto, o público identifica com dificuldade tábuas de madeira, molas de metal, cavilhas de cítara, um gira-discos, dois pratos de bateria, uma cuvette de cogumelos, barras de (agressiva) esferovite para executar com um arco de violoncelo... Nenhuma dessas peças, contudo, vale mais por si própria do que pela máquina em que se insere ou o conjunto que compõe. E é por isso que, abstraídos do individual, nos deixamos embalar por um coletivo de instrumentos inóspitos. Há momentos em que as frequências testadas agridem, como unhas a raspar num quatro de lousa, mas o que predomina é um som puro, que, embora com ritmo e uma certa e esparsa melodia, já é raro no quotidiano e pouquíssimas vezes se aprecia nesta simultaneidade de tempo e espaço, comodamente, no conforto de uma sala que permite olhos fechados sem que nos acusem de sono e desprezo. Chegando a ser calmante e hipnótico, inspirando recolhimento e meditação, o exercício sono-electro-magneto-luminoso de Henrique Fernandes é uma viagem parada. Tem gotas de chuva que caem do telhado para um balde de chapa, chamadas interrompidas no auscultador de um telefone fixo, o ronco do motor de um camião de caixa aberta, a campainha insistente da cancela do Vouguinha, a hélice discreta de uma avioneta, o chamamento melancólico de um amolador de facas, a conversa misteriosa das orcas, o sopro enigmático de um corno de osso nos fiordes. ■ Alexandra Couto - - - Registo vídeo-fotográfico de Rogério Nuno Costa durante a primeira visita ao espaço de trabalho/residência de Valentina Parravicini, na Sala de Conferências do INATEL (Santa Maria da Feira), 2 de novembro de 2022: - - -
- RE=INICIAR | Dia # 4
"Experiência 01", preparação da instalação do Colectivo Suspeito na Black Box do Imaginarius Centro de Criação, 4 de novembro de 2022. Fotografia © Colectivo Suspeito. Diário de Bordo por Diogo Sottomayor Quarto dia O Coletivo Suspeito tinha como proposta: “um espaço liminar entre cumplicidade e contemplação”. Para tanto, através de aparelhos eletrónicos aplicados numa parte do corpo da pessoa que o quisesse utilizar, esse mesmo corpo, através do movimento, distância do recetor, e intensidade, criava uma paisagem sonora. Aqui, neste espaço, o criador convoca a sua coreografia, ou apenas movimentos que improvisa para os partilhar de forma externa e, de imediato, recebe um estímulo da máquina. A partir daqui, a relação é construída pela interação estabelecida entre quem mexe e a máquina que reage, por vezes em duplas, onde há uma nova camada, os dois corpos que interagem e criam um jogo, sendo certo que o olhar de ambos também é influenciado pela reação da máquina. Uma espécie de tradução de movimento para som. Universo que foi explorado por outra criadora, mas que não está neste dia. Por agora, resta-nos devolver o equipamento para irmos à multiversidade. Saída "Experiência 01", registo fotográfico da instalação pelo Colectivo Suspeito. Idem. Há uma coisa certa quando entramos num espaço criado por Rogério Nuno Costa: qualquer coisa pode acontecer. Aliás, para quem acompanha o seu trabalho, sabe que ele pode “ir a nossa casa”. Pode cozinhar para nós. Também pode aparecer noutras criações sobre festas de anos. Ou pode surgir como júri de um espetáculo sobre Eurovisão. Ou pode estar todo vestido de verde. Pode estar a falar, ou pode estar em silêncio. Pode apenas estar. Um trabalho dele não se esgota no texto, na forma ou no local. Rogério trabalha em qualquer lugar, e, por isso, nada melhor que estarmos, agora, num tempo qualquer. Podemos escolher se é agora, se será daqui a muitos anos, ou se até já foi num tempo passado (e encontramo-nos, agora, numa espécie de eco do passado). Rogério não tem a intenção de um tempo. A multiversidade ainda não tem espaço. Mas espera vir a ter. Mas não faz questão que tenha. A explicação é complexa, mas Rogério explica-a detalhadamente, numa autêntica tese; uma tese que, não obedecendo à série de formalismos que o ritual tese obriga, é então a especulação de uma tese. Mas na verdade é uma tese. Ele escreveu. Ele citou. Ele relacionou. E questionou. Até que ponto este “oficial”, este “académico”, este “a sério” vai ficar preso a uns monumentos brutos, que, como bem sabemos, estão podres? Tal como o rei vai nu, também sabemos que a universidade vai nua. E devemos continuar a perpetuar esta ideia de sabedoria centrada apenas num lugar? A autora norte-americana Michelle Visage é peremptória: “Não. A universidade não pode continuar a aparecer em todos os locais como um pedaço de tecido. Porque é apenas isso. E um pedaço de tecido não é um vestido”. Tal como a universidade não devia ser apenas calças e gravatas; mas isto das roupas é muito mais complexo... Complexo é também o pensamento de Rogério (nota de rodapé: Isto é dito porque sim): “O texto que estou a ler é uma emanação, etérea e intangível, da tese que não vou, não quero, ou não posso ler, e projeta-se em várias direções temporais e emocionais: para trás dela, para a frente dela, para dentro dela. Nunca por causa dela. Nunca sobre ela. O avesso da tese”. Podem agora jogar pedra, tesoura e papel. Eu ajudo: na próxima jogada vou escolher papel. No meio do aleatório, pode saber bem uma certeza: Pausa para jantar e pensar. Peça da noite. [Nota: neste espectáculo eu participei como intérprete. Portanto, o que vão ler a seguir não é um olhar de fora, exterior. É um olhar de dentro.] “Trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar. As preocupações são aflições do espírito adaptadas à era capitalista. Não estamos mais preocupados com os devaneios, as angústias e com o mistério da existência. Nossas preocupações são as preocupações da agenda, se iremos ter aonde morar, se iremos ter onde dormir e se iremos ter o que comer. Trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar.” Estas são as primeiras palavras que Vinicius Massucato entrega ao público. Eu espero. Ele parte a cadeira. Eu espero. Conheço o Vinicius há muitos anos. Mas hoje não o vejo de fora. Hoje é para performar com ele. Ele continua a falar. Há texto na tela. Conheço-o há tantos anos, já o vi fazer tanta coisa, e hoje estou aqui. À espera. Uma flor. Uma mochila. Um casaco. Chegou a deixa. O beijo aconteceu. O texto foi dito. A música acabou. No fim, alguns dos primeiros comentários são sobre o beijo. Perguntei-me, assim como quem não quer a coisa, quantas vezes vi beijos normativos em cena serem tão comentados. Não me recordo de nenhum. Duas pessoas lidas como homens em cena a beijarem-se, parece, ainda, ser necessário. É um ato político. "As Aflições do Espírito" de Vinicius Massucato com Diogo Sottomayor. Cineteatro António Lamoso, 4 de novembro de 2022. Fotos © Colectivo Suspeito. Diogo Sottomayor Registo fotográfico realizado por Jani Nummela (4 de novembro de 2022). Artistas: Rogério Nuno Costa, Mariana Barros, Tiago Rosário, Vinicius Massucato e Jorge Gonçalves. Espaços: Black Box do Imaginarius Centro de Criação, Foyer e Palco do Cineteatro António Lamoso. Sobre "Multiversidade" de Rogério Nuno Costa por Alexandra Couto Psique e filosofia em spoken word. Dicção sem mácula, timbre au point. Terrena ou cósmica, a matéria expõe-se na volatilidade do pixel. Umas vezes a essência é justa, outras esquiva… Mas em tudo, omnipresente e indefetível, prevalece o cativeiro sensorial daquela magnética e mesmerizante reverberação vocal. "Multiversidade", conferência-performance de Rogério Nuno Costa. Black Box do Imaginarius Centro de Criação, 4 de novembro de 2022. Fotos de Alexandra Couto. "As Aflições do Espírito" de Vinicius Massucato e "Especular o que está entre nós" de Jorge Gonçalves. Registo fotográfico da responsabilidade do Cineteatro António Lamoso, 4 de novembro de 2022:
- RE=INICIAR | Dia # 1
Programa do RE=INICIAR | Encontro de Artes Performativas 2022. Grafismo e artwork de Jani Nummela. Textos de Rogério Nuno Costa. No dia em que saíram da gráfica. Amares, outubro 2022. Diário de Bordo por Diogo Sottomayor Re=iniciar. Re=fazer. Re=imaginar. Re=encontrar. A organização e curadoria do Ballet Contemporâneo do Norte trouxe a Santa Maria da Feira um conjunto de 24 artistas que se espalharam pelos espaços convencionais e não convencionais da cidade – e alguns deles, em mais do que um espaço – mas isso será discutido mais à frente. Isto não é um olhar exaustivo sobre todos os trabalhos, não é uma crítica, e também não é uma memória descritiva, nem tem a pretensão de o ser. Este texto é uma reflexão de alguém que esteve presente neste encontro e que procura, aqui, neste espaço, com esta distância temporal, um olhar de novo para o que ficou, o que aconteceu. O encontro de tantas visões artísticas poderia resultar apenas numa cacofonia de ideias, porém, tal não aconteceu. O espaço de generosidade que cada artista propôs demonstrava que a ideia deste re=iniciar não era apenas uma repetição ou representação, mas sim uma oportunidade de re=ativar uma nova forma de fazer, um novo olhar, passado este tempo sobre a pandemia que, a cada dia, parece mais distante. Sendo isto uma reflexão pessoal de um observador externo, proponho ao leitor um contrato de ficção. Levarei quem quiser caminhar textualmente comigo por estas memórias. Porém, para que a relação resulte, preciso que algumas vulnerabilidades fiquem expostas, pelo que tenho de as mostrar antes de começarmos esta caminhada: Há performances que não consegui ver: Miguel Pereira, Mariana Barros, Nélson d’Aires e Henrique Fernandes. Há performances que não vi porque participei nelas. E ver de dentro não é o mesmo do que ver de fora. Há performances onde estão antigos professores, amigos de longa data e ex-colegas de faculdade. Há performances que não ouvi. Vi entendimentos performativos de quem a ouviu. Há performances cuja construção vi de fora, mas que no dia da apresentação mergulhei com essas pessoas dentro. Há performances onde depois tive acesso ao texto e outras onde apenas tenho a memória do que foi dito. Há performances que considero que não devo escrever sobre elas. Não temos de nos ligar a tudo o que vemos. Cada gesto deste encontro é arte e a arte é subjetiva. Como tal, não quis criar uma ligação artificial. Dito isto, podemos começar, espero que estejam confortáveis. Encontramo-nos no ponto 9. Registo fotográfico realizado por Jani Nummela (1 de novembro de 2022). Artistas: Marina Leonardo, Miguel Refresco, Carminda Soares e Catarina Real. Espaços: Black Box e Nave Central do Imaginarius Centro de Criação, ruas de Santa Maria da Feira, foyer do Cineteatro António Lamoso. Primeiro dia Marina Leonardo convoca-nos através de uma coreografia simples: “Cicatriz. Andar. Queda. Dança”. E ocorrem uma série de encontros, despedidas, procuras e gestos que nos levem a esse estado de espírito. A construção de algo que, tal como a cadeira da verdade, pode ser verdadeira ou não, essa cadeira é apenas um dispositivo, que nos mostra que o ato de partilhar é mais importante do que saber se é verdade ou não. Uma história não se esgota no seu grau de veracidade. Pausa para almoço. Depois, o encontro com a instalação de Miguel Refresco: “Porque é que aqui o guardanapo é de pano e temos de o colocar no colo? Com alguma relutância, posso dizer-te que há locais onde devemos agir com formalidade e convencionou-se que nestes contextos, sendo de pano, o guardanapo havia de estar sobre as pernas”. Aqui, já sentados, podemos refletir sobre convenções sociais enquanto os elementos naturais a enformam. A areia não é apenas areia. A luz do sol, tal como as convenções, também desaparece quando já não é necessária. O texto desta instalação remete-nos para um quotidiano ao mesmo tempo que há uma partilha de alguém que detesta mesas na diagonal nos cafés. É hora de levantar, preparar as sapatilhas e levar cimento. Mudança de media. Já não estamos numa sala de ensaio. Já não é uma galeria de um museu. Carminda Soares, no seu audiowalk, começa: “Construir um bunker dentro da minha cabeça. Bem lá no fundo do cérebro, um bunker. Podem tocar à campainha, gritar, chamar por mim, estou dentro dum bunker. Dentro da minha cabeça ninguém me encontra.” E daqui, o público é convidado a correr pelas ruas da cidade, enquanto o texto é sussurrado a cada um durante o percurso. Passam pelo estádio com luz rosa para auxiliar no processo de crescimento da relva, passam pela tendo do circo, passam pelas traseiras do circo até à camioneta, que os leva de volta ao ponto de encontro. Carminda leva o seu público atrás dela a correr, e o texto corre nos ouvidos dos espetadores. A mistura das ruas da cidade e dos locais por onde passam leva o público, aquele coletivo, à exaustão. O texto, também ele, repercute a exaustão, terminando: “Há um sistema de poder em todas as parte do mundo. Uns acima dos outros. Mortes que valem menos que outras”. - - - Excerto de "Light on Light", de Carminda Soares. Captação GoPro e edição de Rogério Nuno Costa. Excerto de ficheiro sonoro/texto: Carminda Soares. - - - A camioneta chegou. Da camioneta passamos para a cadeira. E da cadeira Catarina Real termina o primeiro dia com a apresentação do seu livro. Livro esse que parte para a construção experimental de uma narrativa através de recortes de uma coleção de suplementos culturais do Ípsilon, suplemento do jornal Público. Recortes que a autora partilha, agora em livro, mas cuja composição permite novas leituras; um trabalho que evoca, numa certa medida, a obra de Ana Hatherly, deixando-nos olhar para o texto de uma forma mais experimental, numa combinação de palavras para criar uma outra coisa que vai para além do seu significado. Fim do primeiro dia. Diogo Sottomayor - - - Registo fotográfico da responsabilidade do Município da Feira & Cineteatro António Lamoso: "No dia em que assisti/participei/observei/corri no maravilhoso LIGHT ON LIGHT da Carminda Soares, trabalho apresentado no contexto do RE=INICIAR | Encontro de Artes Performativas organizado pelo Ballet Contemporâneo do Norte, em Santa Maria da Feira. Podem tirar o Rogério do abîme, mas não conseguem tirar o abîme do Rogério...", in www.instagram.com/rogerionunocosta